quinta-feira, 10 de maio de 2012

Leoni em Liberdade e Lei, no segundo capítulo


A história está tão cheia de exemplos de violência, roubo, invasões de terras e assim por diante, que muitos pensadores se sentiram justificados em dizer que a origem da propriedade privada é simplesmente a violência, e que, por isso, deve ser encarada como irremediavelmente ilícita, hoje, assim como nos primórdios. Os estoicos, por exemplo, imaginavam que toda a extensão de terra sobre o planeta era originalmente comum a todos os homens. Chamavam essa condição legendária de communis possessio originaria. Certos apóstolos do Cristianismo, particularmente nos países latinos, ecoaram essa premissa. Assim, Santo Ambrósio, o famoso arcebispo de Milão, pôde escrever, no século quinto da Igreja da Inglaterra, que se, por sua vez, a Natureza providenciou para que as coisas fossem comuns a todos, os direitos de propriedade privada eram devidos à usurpação. Ele cita os estoicos, que sustentavam, segundo ele, que tudo na terra e nos mares foi criado para o uso comum de todos os seres humanos. Um discípulo de Santo Ambrósio, chamado o Ambrosiastro, diz que Deus deu tudo ao homem em comum, e que isso se aplica ao Sol e à chuva,  assim como à terra. O mesmo é dito por São Zeno de Verona — que deu nome a uma das mais magníficas igrejas do mundo — referindo-se aos homens de tempos ancestrais: «Eles não tinham propriedade privada, e tinham, sim, tudo em comum, como o Sol, os dias, as noites, a chuva, a vida e a morte, uma vez que tudo tinha sido dado a eles no mesmo grau, sem qualquer exceção, pela Divina Providência.» E o mesmo santo acrescenta, obviamente aceitando a ideia de que a propriedade privada é o resultado de coerção e tirania: «O proprietário privado é, sem dúvida,  semelhante a um tirano, tendo ele sozinho o controle total de coisas que poderiam ser úteis a várias pessoas.” Praticamente a mesma ideia pode ser encontrada nos trabalhos de certos canonistas, alguns séculos mais tarde. Por exemplo, o autor da primeira sistematização das regras da Igreja, o assim chamado decretum Gratiani, diz: “Aquele que está determinado a acumular mais do que precisa, é um ladrão.”

Os socialistas modernos, incluindo Marx, simplesmente produziram uma versão revisada dessa mesma ideia. Por exemplo, Marx distingue vários estágios na história da humanidade: um primeiro estágio no qual as relações de produção eram as de cooperação, e um segundo estágio no qual algumas pessoas adquiriram, pela primeira vez, o controle dos meios de produção, colocando, com isso, uma minoria em posição de ser mantida pela maioria. O antigo arcebispo de Milão diria, em linguagem menos complicada e mais efetiva: “À natureza devemos a lei das coisas em comum; a usurpação é devida à lei privada.”

Podemos nos perguntar, é claro, como é possível falar de «coisas comuns a todos». Quem decretou que todas as coisas são «comuns» a todos os homens, e por quê? A resposta usual dada pelos estoicos e seus discípulos, os discípulos do Cristianismo dos primeiros séculos depois de Cristo, era que, assim como a Lua, o Sol e a chuva são comuns a todos os homens, não há razão alguma para se afirmar que as outras coisas, como a terra, não sejam, também, comuns. Esses advogados do comunismo não se deram ao trabalho de fazer uma análise semântica da palavra «comum». Senão, teriam descoberto que a terra não pode ser «comum» a todos os homens da mesma maneira que o Sol e a Lua o são, e que, por isso, não é a mesma coisa permitir que cultivem a terra em comum e deixar que usem o luar, ou a luz do Sol, ou o ar fresco, quando saem para passear. Os economistas modernos explicam a diferença chamando atenção para o fato de que  não há escassez de luar, enquanto que há escassez de terra. Não obstante a natureza truísta dessa  afirmação, uma pretensa analogia entre coisas escassas, como terra arável, e coisas abundantes, como luar, sempre foi uma boa razão, aos olhos de muitas pessoas, para afirmarem que os «não tenho» são constrangidos pelos «tenho», e que os últimos privaram ilicitamente os primeiros de certas coisas originalmente «comuns » a todos os homens. Essa confusão semântica introduzida no uso da palavra «comum», pelos estoicos e pelos antigos discípulos do Cristianismo, foi mantida por socialistas modernos do todos os tipos e repousa, acredito, na origem da tendência, manifestada em especial nos últimos tempos, de se utilizar a palavra «liberdade» em um sentido inequívoco que relaciona «liberdade de desejo» com «liberdade contra a coerção por outras pessoas». 

Essa confusão está ligada, por sua vez, a outra. Quando um merceeiro, um médico, ou um advogado, espera por fregueses ou clientes, cada um daqueles pode se sentir dependente destes últimos para viver. Isso é bem verdade. Mas se nenhum freguês ou cliente aparece, seria um abuso de linguagem dizer que os fregueses ou clientes  que não aparecem coagem o merceeiro, ou o médico, ou o advogado, a morrer de fome. De fato, nenhum cometeu qualquer coerção contra este, pela simples razão de que ninguém sequer apareceu. Trocando em miúdos, simplesmente não houve fregueses ou clientes. Se supomos, agora, que um cliente aparece e oferece um pagamento muito baixo ao médico, ou ao advogado, não se pode dizer que esse cliente em particular está «coagindo» o médico, ou o advogado, a aceitar seu pagamento. Podemos desprezar um homem que sabe nadar e não salva um semelhante, que está se afogando, sob seus olhos, em um rio, mas seria um abuso de linguagem dizer que, ao deixar de salvar o homem do afogamento, aquele estava «coagindo» o último a se afogar. Nessa relação, devo concordar com um famoso jurista alemão do século dezenove, Rudolph Jhering, que ficou indignado com a injustiça do argumento desenvolvido por Portia contra Shylock, representando Antônio, em O mercador de Veneza, de Shakespeare. Podemos desprezar Shylock, mas não podemos dizer que “coagiu” Antônio ou qualquer um a fazer um acordo com ele — um acordo que implicava, segundo as circunstâncias, a morte do último. O que Shylock queria era apenas coagir Antônio a honrar seu acordo, depois de tê-lo assinado. Apesar dessas considerações óbvias, as pessoas estão em geral inclinadas a julgar Shylock da mesma maneira que julgariam um assassino e a condenar agiotas como se fossem ladrões ou piratas, apesar de que nem Shylock, nem qualquer agiota comum pode ser propriamente acusado de coagir alguém a procurá-lo para pedir dinheiro a juros usurários. 

A despeito dessa diferença entre “coerção”, no sentido de algo na verdade feito para prejudicar alguém contra sua vontade, e no sentido de comportamentos como o de Shylock, muitas pessoas, especialmente nos últimos cem anos, na Europa, tentaram injetar na linguagem corrente uma confusão semântica, cujo resultado é que o homem que nunca se dedicou a tomar uma atitude definida em favor de outras pessoas, e que, por isso, não faz nada por elas, é censurado por sua pretensa “omissão” e é acusado como se tivesse “coagido” os outros a fazerem algo contra sua vontade. Isso, em minha opinião, não está de acordo com o uso correto da linguagem corrente dos países que me são familiares. Você não “coage” alguém, se simplesmente deixa de fazer por ela algo que não se comprometeu a fazer. Todas as teorias socialistas sobre a chamada exploração dos trabalhadores pelos empregadores — e, em geral, dos “não tenho” pelos “tenho” — são, em última análise, baseadas nessa confusão semântica. 

Sempre que os historiadores independentes da Revolução Industrial do século dezenove, na Inglaterra, falam da “exploração” dos trabalhadores pelos empregadores, subentendem precisamente essa ideia de que os empregadores exerciam “coerção” sobre os trabalhadores, para que estes aceitassem salários parcos pelo trabalho pesado. Quando códigos como o Trade Disputes Act de 1906, na Inglaterra, outorgaram aos sindicatos o privilégio de coagirem através de atos ilegais os empregadores a aceitarem suas reivindicações, a ideia era a de que os empregados eram a parte mais fraca, e que, por isso, podiam ser “coagidos” pelos empregadores a aceitarem salários baixos, em vez de altos. O privilégio concedido pelo Trade Disputes Act baseava-se no princípio familiar aos europeus liberais daquela época e correspondia também ao sentido de “liberdade” aceito, na linguagem corrente, de que você é “livre”, quando pode impedir outras pessoas de o reprimirem. O problema foi que, enquanto a coerção concedida pelo Act aos sindicatos como um privilégio tinha o significado usual dessa palavra na linguagem corrente, a “coerção” por parte dos empregadores que o privilégio destinava-se a coibir não foi entendida no sentido que essa palavra tinha e ainda tem, na linguagem comum. Se consideramos as coisas desse ponto de vista, temos de concordar com sir Frederick Pollock, que escreveu, em seu Law of torts, que “ a ciência legal não tem, evidentemente, nada a ver com a operação empírica violenta sobre os políticos” , que a legislatura britânica acreditou caber ao Trade Disputes Act de 1906. Precisamos lembrar, também, que a utilização corrente da linguagem não tem nada a ver com o significado de “coerção” que tornou conveniente, aos olhos dos legisladores britânicos, infligir ao corpo político uma operação violenta desse tipo.

Historiadores sem preconceitos, como o professor T. S. Ashton, demonstraram que a situação geral das classes desfavorecidas da população inglesa, depois das guerras napoleônicas, era devida a causas que não tinham qualquer relação com o comportamento dos empreendedores da nova era industrial, naquele país, e que sua origem deve ser buscada nos primórdios da história da Inglaterra. Além disso, os economistas já muitas vezes demonstraram, tanto com a apresentação de argumentos de natureza teórica irrefutáveis quanto com o exame de dados estatísticos, que bons salários dependem da razão entre a quantia de capital investido e o número de trabalhadores. 

Esse, porém, não é o ponto principal de nosso argumento. Se dermos à “coerção” esses significados diversos como os que acabamos de ver, poderemos concluir facilmente que os empresários da época da Revolução Industrial, na Inglaterra, “coagiam” as pessoas a habitarem, por exemplo, casas velhas e insalubres, apenas porque não construíram para seus trabalhadores um número suficiente de casas novas e boas. Da mesma maneira, poderíamos dizer que os industrialistas que não fazem investimentos gigantescos em maquinaria, independentemente dos retornos que possam ter, estão «coagindo» seus trabalhadores a se contentarem com salários baixos. De fato, essa confusão semântica é acalentada por vários grupos de propaganda e pressão interessados em dar definições persuasivas de «liberdade» e de «coerção ». Como resultado, as pessoas podem ser censuradas pela «coerção » que alegadamente exercem sobre outras pessoas com as quais jamais tiveram nada a ver. Assim, a propaganda de Mussolini e Hitler, antes e durante a II Guerra Mundial, incluía a afirmação de que povos de outros países tão distantes da Itália ou da Alemanha como, digamos, o Canadá ou os Estados Unidos, estavam «coagindo» os italianos e os alemães a se contentarem com seus poucos recursos materiaise seus territórios comparativamente pequenos, apesar de nem uma milha sequer de território alemão ou italiano jamais ter sido tomada pelo Canadá ou pelos Estados Unidos. Da mesma forma, após a última Guerra Mundial, muitas pessoas diziam — especialmente os pertencentes à “intelligentsia” italiana — que os ricos proprietários de terras do Sul da Itália eram os responsáveis diretos pela miséria dos pobres trabalhadores daquelas regiões, ou que os habitantes do Norte da Itália eram os responsáveis pela depressão do interior do Sul, ainda que nenhuma demonstração pudesse ser seriamente feita para provar que a riqueza de certos proprietários de terras do Sul da Itália era a causa da pobreza dos trabalhadores, ou que o padrão razoável de vida desfrutado pelo povo do Norte da Itália era a causa da ausência de tal padrão no Sul. O pressuposto implícito em todas essas ideias era o de que os “tenho” do Sul da Itália estavam “coagindo” os “não tenho” a uma existência pobre, da mesma forma que os habitantes do Norte estavam “coagindo” os que viviam no Sul a se contentarem com receitas agrícolas, em vez de construírem indústrias. Devo salientar também que uma confusão semântica análoga está por trás de muitas das acusações feitas aos povos do Ocidente — incluindo os Estados Unidos — e das atitudes adotadas em relação a eles pelos grupos dirigentes em certas ex-colônias, como o Egito e a Índia. 

Isso resulta em ocasionais motins e tumultos e todo tipo de ações hostis por parte das pessoas que se sentem «coagidas». Outro resultado não menos importante é a série de decretos, códigos e dispositivos, em níveis nacional e internacional, criados para ajudar as pessoas alegadamente «coagidas» a contra-atacarem essa «coerção», através de artifícios, privilégios, concessões, imunidades etc. legalmente impostos. Assim, uma confusão de palavras causa uma confusão de sentimentos, e ambos reagem reciprocamente um sobre o outro para confundir as coisas ainda mais. 

Não sou tão ingênuo quanto Leibniz, que supunha que muitas questões econômicas e políticas podiam ser ajustadas, não através de disputas — clainoribus —, mas com uma espécie de ajuste de contas — calculemus —, através do qual seria possível para todas as pessoas envolvidas concordarem, pelo menos em princípio, sobre as questões em jogo. Mas decididamente sustento que um esclarecimento semântico é mais útil do que se acredita, bastando que as pessoas estejam em posição de dele se beneficiarem.

Nenhum comentário: