quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Anomia e Anarcocapitalismo

[entre aspas o início do livro "A lei e a Ordem", de Ralf Dahrendorf, da série Cadernos Liberais]

"Em Berlim, em fins de abril de 1945, os sinais de decomposição eram inconfundíveis. Em nossa calma rua de subúrbio, eu não era o único que estivera se escondendo durante semanas, num tipo de prisão domiciliar voluntária. Na casa ao lado, um jovem em visita a parentes, a caminho de sua unidade do exército, havia prolongado sua estada por tempo indeterminado, à espera do fim. Agora, a situação estava mudando. Do outro lado da rua, oficiais da SS não mais entravam e saíam da casa da linda viúva e de suas filhas; em breve, os lençóis seriam pendurados nas janelas, indicando a rendição aos oficiais das forças de ocupação. Outros tinham mais dificuldades em se adaptar. O militar aposentado da casa um pouco mais abaixo colocava munição em sua arma para matar a esposa e, em seguida, suicidar-se, pois o casal não poderia suportar  momento de vergonha para a nação. Em outras partes, disparavam-se tiros de forma mais arbitrária. Um jovem fanático feria um líder da juventude hitlerista, por este haver ousado sugerir que Hitler conduzira a Alemanha à desgraça. Será que o Fuehrer ainda estava vivo? Tornou-se subitamente claro que não restava mais nenhuma autoridade, absolutamente nenhuma.

Começaram os boatos. Os armazéns militares no bosque ao lado estavam desertos! Seria verdade? Fui verificar, junto com o jovem da casa ao lado, e descobrimos os armazéns sem qualquer sinal de guardas e ocupantes. Agarramos uma bandeja com mais de vinte quilos de carne fresca e a carregamos para casa, onde minha mãe apressou-se em cozinha-la, no porão, no caldeirão de ferver roupas. As lojas ao redor da estação vizinha ao metrô haviam sido abandonadas! Quando lá cheguei, dúzias de pessoas, talvez centenas, desmontavam balcões e prateleiras; as mercadorias existentes já haviam sido levadas. A única exceção era a livraria, onde alguns conhecedores faziam suas escolhas. Ainda tenho comigo os cinco pequenos volumes de poesia romântica que adquiri naquela ocasião. Adquiri? Todos levavam para casas sacolas e malas repletas de coisas roubadas. Roubadas? “Levadas” talvez seja mais correto, pois mesmo a palavra “furto” parecia haver perdido seu significado.

Foi então que os primeiros oficiais russos apareceram em nossa rua, fazendo-nos lembrar que novas autoridades já se aproximavam. Eles iniciaram seu domínio da mesma forma que os antigos terminaram o deles, com um vasto alarde de atos arbitrários de violência e, muito ocasionalmente, também de atos de solidariedade. Quando meu professor de História, um antinazista de convicções prussianas, abriu a porta de sua casa, foi simplesmente baleado e morto por um soldado russo. Uma senhora idosa, a ser interrogada por um soldado montado a cavalo sobre qual a razão de ela estar chorando, respondeu que o outro soldado acabara de lhe roubar a bicicleta, e o russo, para grande espanto da boquiaberta senhora, desceu e ofereceu as rédeas, dizendo-lhe calmamente que levasse o cavalo no lugar da bicicleta. A guerra de todos contra todos era também um estado de compaixão espontânea. E, é claro, nenhuma das situações perdurou. O momento supremo e horrível da falta de leis não passava de uma interrupção breve de respiração, entre dois regimes cuja respiração pesada se fazia sentir de forma similar sobre as espinhas dobradas de seus súditos. Como o êxtase amedrontador da revolução, o momento passou. Enquanto as leis absolutas de ontem tornavam-se a injustiça absoluta do amanhã – e a injustiça de ontem, as leis do amanhã –, houve  uma breve pausa de anomia, não mais do que poucos dias, acrescidos de algumas semanas em cada lado: primeiro para se desmontar e, depois, então, para se restabelecer as normas.”

Como eu sei que haverá quem ignore os dois primeiros parágrafos para, baseando-se somente no terceiro, vir dizer “tá vendo que o problema é o Estado?”, devo lembrar que se houve, realmente, muitos problemas com os Governos Nazista e Soviético, devemos lembrar que na porção Ocidental da Alemanha NÃO foi, em absoluto, essa a tônica e que o objetivo do livro de Ralf Dahrendorf é, justamente, ressaltar o perigo da Anomia.


Anomia, termo criado por Durkheim, é composta por “nomos” [lei], somado à partícula negativa “a”, e o contexto em que Durkheim o utilizou torna-o bem sutil, qual seja, em seu livro sobre o suicídio, no qual tenta indicar a relação entre “falta de chão” ou “desvios do padrão normativo social” e a desintegração do suicida. Especificamente no espectro político a anomia remete à desintegração social que advém do enfraquecimento das instituições que alicerçam a sociedade mesma e que pode, então, levar a tiranias. E, aqui, entra a discussão sobre a viabilidade do anarcocapitalismo em algum lugar específico enquanto AINDA estamos em um mundo em que existem Estados autoritários e nem um pouco preocupados com as liberdades individuais, por exemplo [e, sim, há Estados que primam por uma organização social o mais harmônica possível, pela defesa do mais fraco ante o mais forte, enfim, pela distribuição equânime da justiça e dos direitos].

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