"É bem verdade que o Carnaval brasileiro a muito perdeu sua essência entrudística, mais uma herança portuguesa, para tornar-se referência maior do entretenimento não só dentro do país, como no mundo. É correto afirmar também que o evento que marca a inversão de papéis sociais e elege a loucura como sua única lei soberana perdeu também a muito suas características periféricas, aquelas que colocavam o Carnaval no calendário ao lado das festividades da Páscoa, do Dia dos Namorados, das festas juninas, do Natal etc. (ou seja, dos momentos excepcionais que fogem a realidade brasileirística) para assumir um dimensionamento impressionante e um posto nuclear no que se refere a personalidade nacional. Personalidade essa que, junto ao futebol, marca o imprescindível perfil verde e amarelo que, por sinal, é muito bom para os negócios (e, com isso, eu acabo com todo o suspense e já lhes antecipo a resposta para a questão seguinte). No entanto, é preciso questionar o curso histórico através de uma visão retrospectiva que auxilie num olhar mais apurado dos fatos em questão, ou seja, equivalendo a uma única pergunta que é central nessa investida perceptiva: o Carnaval brasileiro é bom para quem?
Caros leitores. Não quero me condicionar com essas breves observações a um papel de vilão do Carnaval que se aproxima. Muito menos ser hipócrita, pois eu também já consumi desse produto que torna a vida brasileira mais colorida, mais festiva, que retarda o início do ano e, portanto, das obrigações. Um produto que nos renova, que recria o sentimento de unidade e nos reserva grandes doses de paixão nacional, de orgulho de ser brasileiro, assim como nos breves dias de Copa do Mundo também o fazem. Mas quero sim debater com os companheiros que utilizam este blog como alimento em conteúdo, promovendo algumas subquestões que nascem da primeira questão aqui anteriormente citada, trazendo-lhes mais ferramentas para incitá-los a pensar do que propriamente respostas para as suas dúvidas.
O estudioso Roberto DaMatta se impressionou ao ver no Carnaval brasileiro um potencial enigmático e extraordinário. Segundo ele, seria possível afirmar categoricamente que o Carnaval era a única festa verdadeiramente do povo, onde não haviam centralidades estrategicamente transplantadas a festa para perpetuar a liberdade de poder e dominação da tirana burguesia, onde não se fazia presente (ao menos durante a festa) qualquer sopro de continuidade das hierarquias, onde a lei da inversão dos papéis jogava de forma inédita a favor do povo e suas vontades. Na história mais recente do Carnaval, é básica a noção de que cada indivíduo (especialmente os das classes mais baixas), durante a festa, tem o direito de se fantasiar, escolhendo assim aquele papel que gostaria de desempenhar perante a sociedade, como: médico, advogado, estrela de outros entretenimentos idolatrados, seja no cinema, no futebol, na música, etc. Nada impediria este indivíduo de expressar suas vontades. Num lugar onde a lei é não ter lei, as brincadeiras podem envolver melanças (prática comum do entrudo popular clássico), constantes críticas a situação política da nação ou de algumas regiões, o sagrado e o profano, dentre outros temas recorrentes. Portanto, a posição defendida por DaMatta e recontada posteriormente em inúmeros resumos sobre a história da festa pode ser presenciada cada vez que o Carnaval se aproxima das suas raízes entrudísticas e se deleita na meladeira sem fim dos rostos e corpos de todas as idades, seguindo pelas ruas de forma desordenada, contaminando com banhos de loucura os primeiros que percebem nas ruas, ao som de bandinhas improvisadas que entoam frevos rapidamente ensaiados, pernambucanizando até a Bahia e o Rio de Janeiro, rainha e rei da festa, respectivamente.
Do outro lado dessa condição, está a instituição Carnaval. Aquela que se apoderou da cultura exótica dos povos portugueses, italianos, franceses, mesclando propositadamente a extravagante composição da festa em um comércio de proporções alarmantes. A indústria carnavalizou-se. O Carnaval industrializou-se (o trio elétrico foi a primeira prova disso). Nestes dias que não deveriam ser planejados, grandes esquemas são montados para: a comercialização de bebidas, que gera lucros de milhões para as indústrias no segmento, tornando nossa sociedade cada vez mais dicotômica (de um lado, as campanhas sobre a conscientização do consumo de álcool; de outro, a pandemia que causa a venda desregrada das bebidas); a comercialização das drogas; a comercialização do sexo; a comercialização até do sentimento de inclusão carnavalesca (com a venda de abadás em alto custo, equivalente a um ingresso para o acesso a festa), ou seja, limitando o folião ao consumo de uma festa “melhor” que as algazarras de rua. Por trás destes fatores de compra e venda, existem os grandes líderes e interessados na comercialização de pacotes turísticos que “vendem” a cultura dos Estados, que injetam dinheiro dificilmente utilizado na manutenção da saúde, segurança, moradia de qualidade, dentre outros princípios básicos para o bem estar social. A premissa pode ser simples, mas é infalível: para a injeção de recursos em entretenimentos, é primordial que se garantam inicialmente o suprimento das necessidades primárias da população.
O Carnaval de Salvador, por exemplo, registrado no Guiness Book como a maior festa popular do mundo, também bate recordes quanto ao investimento na festa (uma tática governamental – mas também privada – prevista e utilizada pelo governo do Rio de Janeiro a partir de 1855, com o nascimento das chamadas Sociedades Carnavalescas que já emitiam regras para a participação dos foliões). O Governo da Bahia juntou-se as empresas financiadoras para promover uma transmissão da festa a mais de 180 países. Só em 2008, os investimentos chegaram em torno de R$40 milhões nas áreas de segurança, saúde, turismo e cultura para a recepção de qualidade dos turistas (só lembrando que, atualmente, o Estado vive maus momentos com a greve de militares que, por consequência, ocasionou um significativo e catastrófico aumento nos roubos e assassinatos). Para que serviria ostentar uma das maiores festas do mundo se o retorno (ao menos vistos nos dados estatísticos divulgados) não é devidamente repassado as áreas mais problemáticas da nação, como saúde, educação, segurança? Qual o propósito do investimento repentino em algumas destas áreas quando a data carnavalesca se aproxima? Seria “varrer a poeira pra debaixo do tapete”? Todas são subquestões que se destrincham a partir da nossa questão central: sendo assim, o Carnaval brasileiro é bom pra quem?
Como se não bastasse, o Deputado Federal ACM Neto (DEM-BA) divulgou um dado tanto quanto inusitado: “Parece inacreditável, mas é verdade. O governo da Bahia, que abandonou o Estado, que está matando o Pelourinho e outros pontos turísticos de Salvador, está investindo R$ 12 milhões no Carnaval das milionárias escolas de samba do Rio de Janeiro. Temos de denunciar este absurdo. Quero saber, centavo por centavo, como esta verba está sendo investida, quais as escolas beneficiadas com o nosso dinheiro. Vou solicitar ajuda ao Ministério Público também…” (ACM Neto).
O Carnaval do povo, não é mais do povo. Mas isso não deve ser mais surpresa pra ninguém. As liberdades carnavalescas foram transpostas por regras rígidas de participação, amparadas por esquemas institucionais cada vez mais fortes e organizados. Espetáculos programados em benefício de quem? Das grandes indústrias. No Carnaval, não se consome mais o imaginário mundo louco. O consumo agora é estritamente capitalista e nada utópico. Olhando por esse lado, os rituais que brotavam das comunidades, os bloquinhos de rua, parecem bem mais agradáveis. A liberdade de expressão da grata loucura se desfez, dando lugar a mais uma relação de compra e venda. O que era excepcional e transcendental, hoje não passa de mais um reflexo da vida cotidiana. "
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