[entre aspas o início do livro "A lei e a Ordem", de Ralf Dahrendorf, da série Cadernos Liberais]
"Em Berlim, em fins de abril de 1945, os sinais de
decomposição eram inconfundíveis. Em nossa calma rua de subúrbio, eu não era o
único que estivera se escondendo durante semanas, num tipo de prisão domiciliar
voluntária. Na casa ao lado, um jovem em visita a parentes, a caminho de sua
unidade do exército, havia prolongado sua estada por tempo indeterminado, à
espera do fim. Agora, a situação estava mudando. Do outro lado da rua, oficiais
da SS não mais entravam e saíam da casa da linda viúva e de suas filhas; em
breve, os lençóis seriam pendurados nas janelas, indicando a rendição aos
oficiais das forças de ocupação. Outros tinham mais dificuldades em se adaptar.
O militar aposentado da casa um pouco mais abaixo colocava munição em sua arma
para matar a esposa e, em seguida, suicidar-se, pois o casal não poderia
suportar momento de vergonha para a
nação. Em outras partes, disparavam-se tiros de forma mais arbitrária. Um jovem
fanático feria um líder da juventude hitlerista, por este haver ousado sugerir
que Hitler conduzira a Alemanha à desgraça. Será que o Fuehrer ainda estava
vivo? Tornou-se subitamente claro que não restava mais nenhuma autoridade,
absolutamente nenhuma.
Começaram os boatos. Os armazéns militares no bosque ao lado
estavam desertos! Seria verdade? Fui verificar, junto com o jovem da casa ao
lado, e descobrimos os armazéns sem qualquer sinal de guardas e ocupantes. Agarramos
uma bandeja com mais de vinte quilos de carne fresca e a carregamos para casa,
onde minha mãe apressou-se em cozinha-la, no porão, no caldeirão de ferver
roupas. As lojas ao redor da estação vizinha ao metrô haviam sido abandonadas! Quando
lá cheguei, dúzias de pessoas, talvez centenas, desmontavam balcões e
prateleiras; as mercadorias existentes já haviam sido levadas. A única exceção
era a livraria, onde alguns conhecedores faziam suas escolhas. Ainda tenho
comigo os cinco pequenos volumes de poesia romântica que adquiri naquela
ocasião. Adquiri? Todos levavam para casas sacolas e malas repletas de coisas
roubadas. Roubadas? “Levadas” talvez seja mais correto, pois mesmo a palavra “furto”
parecia haver perdido seu significado.
Foi então que os primeiros oficiais russos apareceram em
nossa rua, fazendo-nos lembrar que novas autoridades já se aproximavam. Eles iniciaram
seu domínio da mesma forma que os antigos terminaram o deles, com um vasto
alarde de atos arbitrários de violência e, muito ocasionalmente, também de atos
de solidariedade. Quando meu professor de História, um antinazista de
convicções prussianas, abriu a porta de sua casa, foi simplesmente baleado e
morto por um soldado russo. Uma senhora idosa, a ser interrogada por um soldado
montado a cavalo sobre qual a razão de ela estar chorando, respondeu que o
outro soldado acabara de lhe roubar a bicicleta, e o russo, para grande espanto
da boquiaberta senhora, desceu e ofereceu as rédeas, dizendo-lhe calmamente que
levasse o cavalo no lugar da bicicleta. A guerra de todos contra todos era
também um estado de compaixão espontânea. E, é claro, nenhuma das situações
perdurou. O momento supremo e horrível da falta de leis não passava de uma
interrupção breve de respiração, entre dois regimes cuja respiração pesada se
fazia sentir de forma similar sobre as espinhas dobradas de seus súditos. Como o
êxtase amedrontador da revolução, o momento passou. Enquanto as leis absolutas
de ontem tornavam-se a injustiça absoluta do amanhã – e a injustiça de ontem,
as leis do amanhã –, houve uma breve
pausa de anomia, não mais do que poucos dias, acrescidos de algumas semanas em
cada lado: primeiro para se desmontar e, depois, então, para se restabelecer as
normas.”
Como eu sei que haverá quem ignore os dois primeiros
parágrafos para, baseando-se somente no terceiro, vir dizer “tá vendo que o
problema é o Estado?”, devo lembrar que se houve, realmente, muitos problemas
com os Governos Nazista e Soviético, devemos lembrar que na porção Ocidental da
Alemanha NÃO foi, em absoluto, essa a tônica e que o objetivo do livro de Ralf
Dahrendorf é, justamente, ressaltar o perigo da Anomia.
Anomia, termo criado por Durkheim, é composta por “nomos”
[lei], somado à partícula negativa “a”, e o contexto em que Durkheim o utilizou
torna-o bem sutil, qual seja, em seu livro sobre o suicídio, no qual tenta
indicar a relação entre “falta de chão” ou “desvios do padrão normativo social”
e a desintegração do suicida. Especificamente no espectro político a anomia
remete à desintegração social que advém do enfraquecimento das instituições que
alicerçam a sociedade mesma e que pode, então, levar a tiranias. E, aqui, entra
a discussão sobre a viabilidade do anarcocapitalismo em algum lugar específico enquanto
AINDA estamos em um mundo em que existem Estados autoritários e nem um pouco
preocupados com as liberdades individuais, por exemplo [e, sim, há Estados que
primam por uma organização social o mais harmônica possível, pela defesa do
mais fraco ante o mais forte, enfim, pela distribuição equânime da justiça e
dos direitos].
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