terça-feira, 8 de maio de 2012

Leoni, Liberdade e Lei, Capítulo I [edição do Instituto Mises Brasil]


Os sistemas políticos inglês e americano até certo ponto foram e ainda são imitados, em muitos aspectos, por todos os povos do mundo. Nações europeias produziram imitações muito boas desses sistemas, e isso se deve também ao fato de que sua história e civilização eram um tanto parecidas com as dos povos de língua inglesa. Muitos países europeus, copiados hoje por suas antigas colônias em todo o mundo, introduziram em seus sistemas políticos algo semelhante ao Parlamento Inglês ou à Constituição Americana e se vangloriam de terem uma “liberdade” política como a desfrutada pelos ingleses ou pelos americanos, se não hoje, pelo menos no passado. Infelizmente, mesmo nos países que têm, como a Itália, por exemplo, a civilização mais antiga da Europa, “liberdade” enquanto princípio político significa algo diferente do que significaria se realmente relacionada, como o é na Inglaterra e nos Estados Unidos, à instituição do habeas corpus ou às dez primeiras emendas da Constituição Americana. As regras podem parecer quase as mesmas, mas não funcionam da mesma forma. Nem os cidadãos, nem os funcionários do governo as interpretam
como os ingleses e os americanos, sendo a prática resultante bem diferente em muitos aspectos. 

Não consigo encontrar exemplo melhor para o que aqui quero dizer do que o fato de que, na Inglaterra e nos Estados Unidos, os casos criminais devem ser ajustados — e o são realmente — através de “um julgamento rápido e público[grifo do blogueiro]” — como previsto na Sexta Emenda da Constituição Americana. Em outros países, inclusive a Itália, apesar de existirem leis como certos artigos especiais — o 272, por exemplo — do Códice di Procedura Penale italiano, que contêm várias disposições relativas a pessoas suspeitas de um crime e mantidas na prisão à espera de julgamento, um homem que tenha sido detido para responder por um crime pode ficar na prisão por um tempo que pode chegar a um ou dois anos. Quando finalmente é dado como culpado e condenado, talvez possa ser libertado imediatamente, uma vez que já cumpriu quase toda sua pena. É claro que, se provada sua inocência, ninguém pode lhe restituir os anos que perdeu na cadeia. Dizem que, na Itália, os juízes não são numerosos o suficiente, e que a organização dos julgamentos não é, provavelmente, tão eficiente quanto poderia ser, mas que a opinião pública, obviamente, não é informada ou ativa o suficiente para denunciar esses defeitos do sistema judiciário, defeitos esses que não aparentam tão claramente serem incompatíveis com o princípio da liberdade política, como o seriam para a opinião pública inglesa ou americana. 


«Liberdade», então, como um termo que designa um princípio político geral, pode, assim, ter significados só aparentemente semelhantes em sistemas políticos diferentes. É preciso que se tenha em mente, também, que essa palavra pode ter significados diferentes e implicações diferentes em momentos diferentes da história de um mesmo sistema legal, e, o que é ainda mais impressionante, pode ter significados diferentes, ao mesmo tempo, em um mesmo sistema legal, em circunstâncias diferentes e para pessoas diferentes. 

Um exemplo do primeiro caso nos é dado pela história do recrutamento militar nos países anglo-saxões. Até épocas razoavelmente recentes, o recrutamento militar, pelo menos em tempos de paz, era considerado, por ingleses e americanos, incompatível com a liberdade política. Por outro lado, os europeus continentais, como os franceses e alemães — ou os italianos, a partir da segunda metade do século dezenove —, consideravam quase indiscutível que tinham de aceitar o recrutamento militar como aspecto necessário de seus sistemas políticos, sem sequer questionarem se, assim sendo, estes últimos ainda poderiam ser chamados de «livres». Meu pai — que era italiano — costumava me contar que, quando foi pela primeira vez à Inglaterra, em 1912, perguntava a seus amigos ingleses por que eles não tinham recrutamento militar, confrontados que eram com o fato de que a Alemanha tinha se tornado uma temível potência militar. Sempre recebia a mesma resposta orgulhosa: «Porque somos um povo livre.» Se meu pai pudesse visitar novamente os ingleses ou os americanos, o homem comum não diria a ele que, por haver recrutamento militar, agora esses países não são mais «livres». Simplesmente porque, nesse meio-tempo, o significado de liberdade política mudou nesses países. Devido a essas mudanças, vínculos que antes eram tidos como óbvios se perderam, e surgem contradições estranhas o bastante para os técnicos, mas que outras pessoas aceitam, consciente ou inconscientemente, ou até mesmo de propósito, como ingredientes naturais de seu sistema político ou econômico. 

Poderes legais sem precedentes conferidos a sindicatos operários, tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra, são hoje um bom exemplo do que quero dizer com «contradições» desse tipo. Na linguagem empregada pelo magistrado da Irlanda do Norte, lorde Mac-Dermott, em seu recente Hamlin lectures (1957), o Trade Disputes Act, de 1906, “coloca o sindicalismo na mesma posição privilegiada que a Coroa Britânica desfrutava até dez anos atrás em relação a atos ilegais cometidos em seu interesse”. Essa lei concedia proteção a uma série de atos cometidos em consequência de um acordo ou combinação, por duas ou mais pessoas, em contemplação ou apoio a uma disputa comercial até então sempre litigável — por exemplo, atos que induzem à violação de um contrato de serviço, ou que interferem no comércio, negócio ou emprego de alguma outra pessoa, ou no direito de outra pessoa de dispor de seu capital ou de seu trabalho como desejar. Como aponta lorde MacDermott, esse é um dispositivo amplo e pode ser usado para acobertar atos produzidos fora do comércio ou emprego envolvidos e que podem, inevitavelmente, causar perdas ou dificuldades a interesses que não tiveram parte na disputa. Outro estatuto, o Trade Union Act, de 1913, revogado por outro Trade Dispute and Trade Union Act em 1927, mas integralmente retomado, através do Trade Disputes and Trade Union Acts em 1946, quando o Partido Trabalhista voltou ao poder, deu aos sindicatos britânicos um poder político enorme sobre seus membros e também sobre toda a vida política daquele país, ao autorizar os sindicatos a gastarem o dinheiro de seus membros para propósitos não diretamente relacionados ao operariado, e sem sequer consultarem os próprios membros sobre o que realmente queriam que se fizesse com seu dinheiro. 

Antes da aprovação desses Trade Unions Acts, não havia qualquer dúvida de que o sentido de «liberdade» política, na Inglaterra, estava ligado à proteção equânime da lei, concedida a todos, contra a repressão de qualquer um, para disporem de seu capital ou de seu trabalho como quisessem. Desde a aprovação dessas leis, na Grã-Bretanha não há mais essa proteção, e não há dúvida de que esse fato introduziu uma contradição impressionante no sistema, no tocante à liberdade e a seu significado. Se você é hoje um cidadão das Ilhas Britânicas, é «livre» para dispor de seu capital e de seu trabalho ao lidar com indivíduos, mas não é mais livre para fazê-lo se estiver lidando com pessoas que pertençam a sindicatos ou que ajam em nome destes. 

Nos Estados Unidos, graças ao Adamson Act de 1916, como escreve Orval Watts em seu brilhante estudo Union monopoly, o governo federal pela primeira vez usou sua autoridade policial para fazer o que os sindicatos provavelmente “não teriam conseguido, sem uma briga longa e cara”. O subsequente Norris-La Guardia Act, de 1932, em certo sentido a contrapartida americana do inglês Trade Union Act de 1906, restringiu os juízes federais em seu uso de injunções nas disputas trabalhistas. Injunções, na lei americana e inglesa, são determinações judiciais de que algumas pessoas não devem fazer certas coisas que causem uma perda irremediável. Como salientou Watts, “as injunções não fazem a lei. Elas simplesmente aplicam princípios de leis já constantes nos códigos, e os sindicatos em geral as utilizam com esse propósito contra empregadores e contra sindicatos rivais”. Originalmente, as injunções normalmente eram emitidas por juízes federais, em favor de empregadores, sempre que um grande número de pessoas pudesse, com poucos meios, causar danos com um propósito ilegal e através de atos ilegais, como a destruição da propriedade privada. As cortes americanas costumavam se conduzir de forma semelhante à das cortes inglesas, antes de 1906. O English Act de 1906 foi concebido com um “remédio” em favor dos sindicatos, contra as decisões dos tribunais ingleses, exatamente como o Norris-La Guardia Act de 1932 tinha a intenção de defender os sindicatos contra as ordens dos tribunais americanos. A primeira vista, poderia se pensar que os tribunais americano e inglês tinham prevenção em relação aos sindicatos. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, muitas pessoas diziam isso. Na verdade, os tribunais adotaram contra os sindicatos simplesmente os mesmos princípios que ainda aplicam contra quaisquer pessoas que conspirem, por exemplo, para danificar a propriedade privada. Os juízes não podiam admitir que os mesmos princípios que funcionavam para proteger as pessoas contra coerção por outros pudessem ser desconsiderados quando esses outros eram funcionários ou membros de um sindicato. O termo «livre de coerção» tinha, para os juízes, um sentido técnico óbvio que justificava a emissão de injunções para proteger tanto empregadores como qualquer outra pessoa contra a coerção por parte de outros.

Nenhum comentário: