As tentativas feitas por alguns acadêmicos, nos últimos tempos, de comparar diferentes formas de comportamento, como a de um comprador ou a de um vendedor, no mercado, e, digamos, a de um eleitor, em uma eleição política, com o objetivo de descobrir algum fator comum entre elas, pareceram-me estimulantes, não só por causa das questões metodológicas envolvidas, relativas às ciências econômica e política, respectivamente, mas também pelo fato de a questão de haver ou não diferença entre a posição econômica e a posição política — ou legal —, respectivamente, dos indivíduos dentro de uma mesma sociedade, ser uma das principais questões em debate entre liberais e socialistas durante os últimos cem ou 120 anos.
Esse debate pode nos interessar em mais de um aspecto, na medida em que estamos tentando evidenciar um conceito de liberdade como a ausência de coerção exercida por outras pessoas, inclusive as autoridades, que implica liberdade nos negócios e em qualquer outra esfera da vida privada. As doutrinas socialistas defendem que, sob um sistema político e jurídico que outorga direitos iguais para todos, nenhuma vantagem na igualdade de direitos toca àquelas pessoas a quem faltam meios suficientes para se beneficiarem de muitos desses direitos. As doutrinas liberais, ao contrário, sustentam que todas as tentativas de “integrar” a “liberdade” política à “liberdade de desejo”, por parte dos “não tenho”, como sugerido ou imposto pelos socialistas, levam a contradições dentro do sistema, como a de não poder atribuir “liberdade”, concebida como ausência de desejo, a todos, sem suprimir a liberdade política e legal, concebida como ausência de coerção exercida por outras pessoas. Mas as doutrinas liberais acrescentam algo mais. Defendem, também, que nenhuma “liberdade de desejo” pode ser realmente alcançada por decreto ou através da direção do processo econômico pelas autoridades, como poderia ser conseguido nas bases
de um mercado livre.
Agora, o que pode ser considerado como um pressuposto comum a socialistas e liberais, é que existe uma diferença entre a liberdade legal e política do indivíduo, concebida como ausência de coerção, e liberdade “econômica” ou “natural” do indivíduo, se aceitamos a palavra “liberdade” também no sentido de “ausência de vontade”. Essa diferença é considerada sob pontos de vista opostos, por liberais e socialistas, mas, em última análise, ambos reconhecem que a “liberdade” pode ter significados diferentes, senão incompatíveis, para indivíduos pertencentes à mesma sociedade.
Não há qualquer dúvida de que introduzir “liberdade de vontade”, em um sistema político ou legal, implica uma alteração necessária do conceito de “liberdade”, entendida como liberdade contra coerção, garantida por aquele sistema. Isso acontece, como destacam os liberais, por causa de certas cláusulas especiais dos estatutos e decretos de inspiração socialista, incompatíveis com a liberdade nos negócios. Mas isso acontece também, e acima de tudo, porque a própria tentativa de se introduzir a “liberdade de querer” tem de ser feita — como admitem todos os socialistas, pelo menos na medida em que querem lidar com sociedades historicamente pré-existentes e não limitar seus esforços de promoverem sociedades de voluntários, em alguma parte remota do mundo — primeiro através de legislação e, portanto, por meio de decisões baseadas na maioria, sem levar em conta se as legislaturas são eleitas, como em quase todos os atuais sistemas políticos, ou se são a expressão direta do povo, como o eram na Roma antiga ou nas velhas cidades gregas e como o são nas atuais Landsgemeinde suíças. Nenhum sistema de livre comércio pode funcionar realmente, se não está enraizado em um sistema legal e político que ajude os cidadãos a neutralizarem as interferências, por parte de outras pessoas — inclusive as autoridades —, em seus negócios. Mas um aspecto característico dos sistemas de livre comércio parece também ser o fato de que são compatíveis — e provavelmente compatíveis apenas com — com sistemas políticos e legais de pouco ou nenhum recurso à legislação, pelo menos no que concerne à vida privada e aos negócios.
Por outro lado, os sistemas socialistas não podem continuar a existir sem a ajuda da legislação. Nenhuma evidência histórica, ao que sei, apoia a suposição de que a “liberdade de querer”, socialista, para todos os indivíduos, é compatível com instituições como o sistema do direito consuetudinário <common law> ou o sistema romano, onde o processo de formulação de leis é desempenhado diretamente por cada um dos cidadãos, com ajuda apenas ocasional de juízes e especialistas como os juristas romanos e sem recorrer, em geral, à legislação.
Somente os chamados “utopistas” que tentaram criar colônias especiais de voluntários para formarem sociedades socialistas, imaginavam que podiam fazê-lo sem legislação. Mas eles também, na verdade, conseguiram passar sem ela apenas curtos períodos de tempo, até que suas associações voluntárias se transformaram em amálgamas caóticos de velhos voluntários, ex-voluntários e novos adeptos sem crenças especiais em qualquer forma de socialismo. O socialismo e a legislação devem estar inevitavelmente ligados para que as sociedades socialistas se mantenham vivas. Essa é, provavelmente, a principal razão do crescente peso atribuído, em sistemas de direito consuetudinário como o inglês e o americano, não só aos estatutos e decretos mas também à própria ideia de que um sistema legal é, acima de tudo, um sistema legislativo, e de que a “certeza” é a efetividade de curto prazo da lei escrita.
A razão pela qual socialismo e legislação estão inevitavelmente ligados é que, enquanto o mercado livre implica um ajuste espontâneo da oferta e da demanda com base nas escalas de preferência dos indivíduos, esse ajuste não pode acontecer, se a demanda não é do tipo a ser satisfeita pela oferta, nas mesmas bases, isto é, se as escalas de preferência daqueles que entram no mercado não são, na realidade, complementares. Isso pode acontecer, por exemplo, em todos os casos em que os compradores achem que os preços pedidos pelos vendedores sejam altos demais, ou quando os vendedores achem que os preços oferecidos pelos compradores sejam baixos demais. Vendedores que não estão em posição de satisfazer os compradores, ou compradores que não estão em posição de satisfazer os vendedores, não podem constituir um mercado, a não ser que vendedores ou compradores tenham algum meio, a sua disposição, de coibir sua contraparte, no mercado, a atender suas exigências. De acordo com os socialistas, os pobres são “privados” pelos ricos daquilo de que precisam. Essa forma de colocar as coisas é simplesmente um abuso de linguagem, pois não está provado que os “tenho” e os “não tenho” tinham o direito à posse comum de todas as coisas.
É certo que evidências históricas apoiam o ponto de vista socialista, em alguns casos, como invasões e conquistas, e geralmente em casos de roubo, pirataria, chantagem e assim por diante. Mas isso nunca ocorre no livre mercado, quer dizer, em um sistema que permite a compradores e vendedores individuais reagirem à coerção exercida por outras pessoas. Vimos também, em relação a isso, que muito poucos economistas levam em consideração essas atividades “desprodutivas”, uma vez que são, em geral, encaradas como completamente à margem do mercado e, por isso, indignas de investigação econômica. Se ninguém pode ser coagido, sem a possibilidade de se defender, a pagar por bens e serviços mais do que pagaria sem coerção, as atividades desprodutivas não podem acontecer, já que, nesses casos, nenhum suprimento correspondente de bens e serviços se adequará à demanda, e nenhum ajuste, entre compradores e vendedores, será obtido. A legislação pode conseguir o que um ajuste espontâneo jamais poderia. A demanda pode ser obrigada a atender a oferta, Ou a oferta pode ser obrigada a satisfazer a demanda, de acordo com certos regulamentos aprovados por corpos legislativos, que possivelmente decidem, como acontece atualmente, baseados em artifícios de procedimentos como a regra da maioria. O fato sobre a legislação que é imediatamente percebido pelos teóricos não menos do que pelas pessoas comuns, é que os regulamentos são impostos a todos, mesmo àqueles que nunca participaram de seu processo de formulação e que nunca tinham tomado conhecimento dele. Esse fato distingue um estatuto de uma decisão expressa por um juiz em um caso trazido a ele pelas partes. A decisão pode ser imposta, mas não o é de forma automática, ou seja, sem a colaboração das partes envolvidas, ou pelo menos de uma delas. De qualquer forma, não é diretamente aplicável a outras pessoas que não tinham parte na disputa ou que não estavam representadas pelas partes no caso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário