segunda-feira, 9 de abril de 2012

Liberdade e a Lei, de Bruno Leoni [capítulo quarto, continuando]

Logo depois, vem [novamente, o grifo é meu. O original é de 1961]:

"Dizem que os romanos tinham pouco gosto por considerações históricas e sociológicas. Mas eles  tinham, sim, uma visão perfeitamente clara do fato que acabei de mencionar. Por exemplo, de acordo com Cícero, Catão, o Censor, o campeão do tradicional estilo de vida romano contra a importação estrangeira — ou seja, grega —, costumava dizer que:

a razão pela qual nosso sistema político é superior aos dos outros países é esta: o sistema político dos outros países foi criado através da introdução de leis e instituições, de acordo com as recomendações pessoais de indivíduos isolados como Minos, em Creta, e Licurgo, em Esparta, enquanto que em Atenas, onde o sistema político foi várias vezes alterado, havia muitas dessas pessoas, como Teseu, Draco, Solon, Cleistenes e vários outros. (...) Nosso estado, pelo contrário, não se deve à criação pessoal de um homem, mas de muitos; não foi fundado durante a vida de nenhum indivíduo em particular, e sim através de vários séculos e gerações. Pois jamais houve, no mundo, um homem tão inteligente capaz de prever tudo, e, mesmo que pudéssemos concentrar todos os cérebros na cabeça de um só homem, seria impossível para ele cuidar de tudo ao mesmo tempo, sem ter a experiência que vem da prática através de um longo período de história.***


Incidentalmente essas palavras nos fazem lembrar daquelas muito mais famosas — porém não mais impressionantes — empregadas por Burke para justificar sua visão conservadora do estado. Mas as palavras de Burke tinham um tom levemente místico que não encontramos nas considerações imparciais do velho estadista romano. Catão está apenas apontando os fatos e não persuadindo as pessoas, e os fatos que menciona devem indubitavelmente ser de grande peso para qualquer um que conheça um pouco de História.

O processo de formulação de leis, como diz Catão, não pertence, na verdade, a qualquer indivíduo, cérebro, momento ou geração em particular. Se você acha que sim, terá resultados piores do que se tivesse em mente o que acabei de dizer. Olhe para a sorte das cidades gregas e compare-as com as nossas. Ficará convencido. Essa é a lição — ou melhor, a mensagem — de um estadista sobre o qual, em geral, sabemos apenas o que aprendemos na escola, que era um chato, rabugento, sempre insistindo em que os cartagineses tinham de ser mortos, e suas cidades, arrasadas.

É interessante observar que, quando economistas contemporâneos como Ludwig von Mises criticam o planejamento centralizado da economia, por ser impossível, para as autoridades, fazerem qualquer cálculo relativo às reais necessidades e às reais potencialidades dos cidadãos, sua posição nos faz lembrar a do antigo estadista romano. O fato de que falta às autoridades centrais, em uma economia totalitária, qualquer conhecimento dos preços de mercado na elaboração de seus planos econômicos é apenas um corolário do fato de que sempre falta, às autoridades centrais, o conhecimento suficiente do número infinito de elementos e fatores que contribuem para as relações dos indivíduos em qualquer momento e em qualquer nível. As autoridades nunca podem estar certas de que o que estão fazendo é realmente o que as pessoas gostariam que fizessem, assim como as pessoas nunca podem ter certeza de que o que querem fazer não terá interferência das autoridades, se cabe a estas dirigirem todo o processo de formulação de leis do país.

Mesmo aqueles economistas que têm defendido da forma mais brilhante o mercado livre contra a interferência das autoridades em geral, têm negligenciado a consideração paralela de que nenhum mercado livre é realmente compatível com um processo de formulação de leis centralizado pelas autoridades. Isso leva alguns desses economistas a aceitarem uma ideia de efetividade da lei, ou seja, a de regras precisamente enunciadas, como a da lei escrita, que não são compatíveis nem com as de um mercado livre nem, em última análise, com a de liberdade tida como ausência de coerção exercida por outras pessoas, incluindo as autoridades, sobre a vida privada e os negócios de cada indivíduo.

Pode parecer secundário, para alguns defensores do mercado livre, que as regras sejam estabelecidas por assembleias legislativas ou por juízes, e pode-se até mesmo defender o mercado livre e se sentir inclinado a pensar que as regras estipuladas pelos corpos legislativos são preferíveis às rationes decidendi imprecisamente elaboradas por uma longa série de juízes. Mas, no caso de se buscar confirmação histórica da estreita ligação entre o mercado livre e o livre processo de formulação de leis, é suficiente considerar que o mercado livre esteve em seu apogeu, nos países de língua inglesa, quando o direito consuetudinário era praticamente a única lei da terra relacionada com a vida privada e os negócios. Por outro lado, fenômenos como os atuais atos de interferência governamental no mercado estão sempre relacionados a um aumento de leis estatutárias e ao que tem sido chamado, na Inglaterra,
de a “oficialização” dos poderes judiciários, como a história contemporânea prova acima de qualquer dúvida.

Se admitirmos que a liberdade individual nos negócios, ou seja, o livre mercado, é um dos aspectos essenciais da liberdade política concebida como a ausência de coerção exercida por outras pessoas, incluindo as autoridades, também devemos concluir que a legislação, em questões de direito privado, é fundamentalmente incompatível com a liberdade individual no sentido anteriormente mencionado. A ideia da efetividade da lei não pode depender da ideia de legislação, se a “efetividade da lei” é compreendida como uma das características essenciais do estado de direito, no sentido clássico da expressão.

Desse modo, creio que Dicey foi perfeitamente coerente ao supor que o estado de direito implica o fato de que as decisões judiciais estão na base da constituição inglesa, e ao contrastar este fato com o processo oposto, no continente, onde as atividades legais e judiciárias parecem basear-se nos princípios abstratos de uma constituição legislada.


Certeza, no sentido da efetividade de longo prazo da lei, era exatamente o que Dicey tinha mais ou menos claro em mente, quando disse, por exemplo, que, enquanto qualquer das garantias que as constituições continentais proporcionavam para os cidadãos, em relação a seus direitos, poderiam ser suspensas ou anuladas por algum poder que estivesse acima da lei comum do país, na Inglaterra, “sendo a constituição baseada no estado de direito, a suspensão daquela, até aonde se pode conceber, significaria (...) nada menos do que uma revolução”.

O fato de que essa revolução está acontecendo agora não destrói e sim confirma a teoria de Dicey. Está ocorrendo uma revolução, na Inglaterra, em virtude da gradual anulação da lei da terra, por meio da lei estatutária e através da conversão do estado de direito em algo que cada vez mais está se parecendo com o état de droit continental, ou seja, uma série de regras que são efetivas apenas porque estão escritas, e gerais, não por uma crença comum por parte dos cidadãos a seu respeito, e sim por terem sido decretadas por um punhado de legisladores.


Em outras palavras, a lei impessoal do país está cada vez mais sob o comando do soberano, na Inglaterra, exatamente como Hobbes e depois Bentham e Austin advogaram, contra a opinião dos juristas de sua época.

***Cícero, De republica ii. 1,2."

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