O que há de errado com a escravidão? Decerto não é somente o fato de ser legalmente proibida que a torna abjeta, desumana, afinal, na maior parte da História ela foi um fato dado – o que nem a justificou ontem, nem a justifica hoje ou a justificará amanhã. A escravidão, pois, possui, em si, algo de condenável. E o que seria este algo? Primeiramente, talvez seja cabido, para explicar a escravidão, definir o que seria - a liberdade.
É sabido que a liberdade não pode ser definida como, simplesmente, se poder fazer o que se quer, ao bel-prazer, inclusive, tal noção de liberdade é contrária à liberdade mesma. Como? Primeiramente vamos excluir a vontade do impossível, como atingir a Lua em um salto, atravessar o Atlântico a nado, etc, mas, ainda, sobra a liberdade para realizar aquilo que se queira E seja possível, e este NÃO pode ser um critério adequado para definir o que pode garantir que alguém seja livre.
Mas a liberdade não consiste em se fazer o que se bem entender? Não: a liberdade, para o ser humano, é ter o domínio completo de seu corpo e dos bens que, através de seu trabalho e da transformação que este opera na Natureza, obtém legitimamente. Mas há uma sutileza: seu corpo e seus bens somente pertencem a você mesmo, i.e., não podem ser apropriados por outrem a seu bel prazer, isto seria uma afronta à liberdade, não seu exercício.
Então, a noção de liberdade, aparentemente de maneira contraditória, encerra um não fazer, ou seja, o não interferir na propriedade alheia sem o consentimento do devido dono. Esta norma negativa [negativa por não ser um obrigar a fazer, mas um obrigar a não fazer; e embora, tal defesa seja uma ação] é essencial para a liberdade e a conseqüente fruição, por parte de nós humanos, de nossa condição de seres racionais e, por isto mesmo, sociais. Sem uma Lei que proíba a ação efetivamente danosa à propriedade alheia, a própria sociedade estaria formada por alicerces frágeis, pronta a ruir sob o estigma da guerra de todos contra todos. Seria o caos.
A escravidão, portanto, vai de encontro a este requisito primeiro para uma salutar vida em sociedade, o da segurança de que, tanto nosso próprio corpo, quanto o que nós produzirmos, nenhum dos dois será expropriado para o benefício alheio – como qualquer ação é sempre feita para sair de um estado presente e chegar a um estado futuro mais satisfatório, caso contrário, sem uma maior satisfação a ser alcançada, nenhuma ação ocorreria; a escravidão, em si, é ineficiente, pois sempre haverá perda de utilidade de alguma maneira, pois o escravo age sob o comando de seu mestre pois teme que, sem fazê-lo, o estado futuro que encontrará será mais desvantajoso ainda que a expropriação de sua produção: o seu próprio corpo sofrerá desde chicotadas até a morte.
Mas e a escravidão voluntária, pode existir? A resposta é simples: não. Uma pessoa pode, por contra própria, submeter-se ao jugo e ao capricho de algum eleito para ser seu mestre por toda a vida [alguns casamentos são assim, dizem]? Pode, até certo ponto, afinal, se até o fim da vida o “escravo” não se rebelar contra seu “dono”, não haverá conflito algum.
Mas nem esta situação é escravidão nem a vontade humana - geralmente - funciona desta maneira, cedo ou tarde as condições que determinaram o contrato acima [como qualquer outro] serão avaliadas, ao menos por um dos envolvidos, como menos valiosas que [qualquer] uma das alternativas que se apresente em sentido da sua dissolução, fazendo-o cessar. Ou seja, na verdade, não houve escravidão, mas consenso, a despeito de ser um de ocorrência deveras incomum. Em certo sentido, são patrão e empregado, o segundo fornece seu trabalho e o primeiro paga de acordo com o preço aceito por este. Há reciprocidade.
Então a escravidão é, portanto, não somente legalmente proibida, mas, mais importante, incompatível com o pleno desenvolvimento de nossa capacidade de humanos, o que significa dizer que, mesmo se acolhida pelo sistema legal, ainda seria ilegítima, injusta, anti-social, desumana. Mas e o que dizer da escravidão que vai no sentido [supostamente] contrário, a do patrão pelo empregado? Poderia ela existir? E, uma vez existindo, seria compatível com as características da razão [e ação] humana?
Acontece que este último tipo de escravidão, apesar de soar impraticável, é aceito por nossa legislação brasileira em um determinado ramo laborial [aceito em certo sentido, em que pesem diferenças de grau, não de tipo]: o funcionarismo público. A vontade inicialmente livre do escravo, do primeiro exemplo, de prestar seus serviços indefinidamente ao amo está presente na abertura do edital, na aplicação da prova e na conseguinte nomeação ao cargo, mas a semelhança para por aí? Uma vez firmado o contrato, não pode o Estado voltar atrás em sua decisão, está fadado a, para sempre, cumprir com a obrigação de empregar o funcionário em seu quadro? Não pode mais mudar sua idéia, mesmo que descubra que cometeu um erro de planejamento e passe, em algum futuro, a não valorar mais o serviço recebido como mais satisfatório que o dinheiro gasto para remunerá-lo?
É somente comparar a situação do Estado como patrão e a de um empregador qualquer, pois, ainda que a legislação atual coloque ônus em cima de ônus para o rompimento de um contrato de trabalho [como se as vontades para contratar e, obviamente, o preceito de que não deve ocorrer apropriação indevida, não fossem suficientemente justas], nem se compara à dificuldade de um rompimento de contrato com um funcionário público. Para ilustrar melhor, vamos dar um exemplo: se um empregado privado e um público cumprem o horário direitinho, executam suas tarefas a contento do que foi determinado, ainda assim, multas à parte, o empresário do setor privado pode, a qualquer momento, decidir que, de posse de seu corpo e de seus bens, não deseja mais, por qualquer motivo que seja, continuar a exercer a troca de “mercadorias” [labor por dinheiro] com seu funcionário.
Já o Estado, sob estas mesmas condições, nada pode fazer, está atado ao contrato [vamos supor que o Estado seja um emérito respeitador de contratos], ainda que este expresse apenas uma vontade baseada numa necessidade que pode muito ter sido avaliada como perene apesar de ser temporária. Sem falar de que certas condutas podem facilmente acarretar na quebra de contrato no mundo privado, como atrasos recorrentes [às vezes, basta um] ou render abaixo do esperado, raramente são passíveis de motivar uma demissão, e isto por determinação legal. Não parece justo.
Um argumento bastante utilizado para praticamente garantir a vitaliciedade do empregado público é que este fez uma prova, geralmente difícil e concorrida, e portanto, “adquiriu” o direito ao cargo, que, aliás, estava, democraticamente, a disposição de [quase] todos os cidadãos do país [sempre há algum tipo de discriminação, mas vamos esquecê-las para seguir o argumento e aceitar que todos podem, se assim entenderem, concorrer às vagas].
Além deste argumento não modificar a liberdade necessária para o convívio social, afinal, desde que não haja prévia apropriação de bens alheios, não se pode obrigar ninguém nem sua propriedade a nada [o Estado, ainda que seja uma instituição, é sempre comandado por indivíduos e age através de indivíduos, ou seja, não é especial e pode ter uma ação legítima cerceada por quem quer que seja], padece de uma inocência ainda maior: afirmar que não há critérios [provas] para que sejam firmados contratos de trabalho na esfera particular.
Ora, se a maioria dos empregadores não pode se dar ao luxo de contratar uma firma para aplicar provas e selecionar candidatos [dinheiro privado não dá em árvore como o estatal], isto não quer dizer que os que venceram a concorrência não o fizeram por alguma espécie de mérito, de disputa, e que esta estava aberta a todos os que se encaixassem no perfil requerido. Aliás, empresas como a Apple e a Microsoft podem ter provas de admissão mais difíceis que a enorme maioria dos concursos públicos, mas ninguém chega a pensar que, por ter passado por todas as fases do processo de admissão, está no direito de assumir que, impreterivelmente, é dono do cargo e ninguém mais tasca. E, como explicamos, está mais do que clara a razão.
Ou seja [assim como na outra modalidade de escravidão, mais conhecida entre nós e felizmente extirpada de nosso sistema jurídico], o que mantém o status do funcionário público de permanente dono do que deveria ser, por justiça, alheio, nada mais é que a lei em vigor. Não há nada intrinsecamente ligado ao funcionarismo em si que o justifique; ao contrário, a razão o denuncia como injusto e anti-natural, como qualquer outro contrato unilateral, e como, tal, deve ser abolida.
E note-se que nem tocamos em problemas maiores, como a proteção contra a concorrência e a perda de eficiência que isto acarreta, nem de onde vem o dinheiro que permite a troca de bens [labor por espécie], fatos que, levados ao extremo, podem impedir a aceitação do funcionarismo público em si, tocamos somente no ponto da vitaliciedade do cargo, e, neste sentido, podemos dizer que os infames funcionários em cargos comissionados são menos danosos ao Estado ao terem limitados no tempo seus contratos de trabalho. Duram, via de regra, somente quatro anos, pois [além do fácil desligamento sem churumelas em tempo anterior].
O fato de que, por ser o Estado uma “empresa” que precisa obedecer a vontade de todos seus donos – fato virtualmente impossível de ocorrer, mas nem precisamos levantar tal questão – e o critério de admissão deve ser o menos arbitrário possível, não modifica o fato de que a diferença entre ambos é que um, se içado ao cargo de maneira menos objetiva [comissionado], ao menos não "usurpa" para si uma função que, no mercado, é de quem a executar melhor, ou, ao menos, o faz temporariamente. Já o concursado, pretende-se detentor de título de nobreza para toda a vida. E, como os nobres de outrora, têm o povão para pagar seus vencimentos. #FAIL
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