quarta-feira, 21 de março de 2012

Guia politicamente incorreto da América Latina, Ed. LeYa, pp. 133/7

OU SE É BOLIVARIANO OU MARXISTA. OS DOIS? NÃO DÁ

"Sendo Bolívar hoje um ícone dos marxistas, emprestamos o centro do auditório para que o alemão KARL MARX, o pai intelectual da esquerda, nos intriduza às particularidades desse personagem tão importante na América Latina. Por um capricho da história, em 1857, Marx foi contratado pelo diretor do jornal New York Daily Tribune para escrever alguns verbetes para uma tal New American Cyclopaedia.

Entre suas atribuições, ele foi encarregado de resumir a vida de Bolívar, que tinha morrido de tuberculose 27 anos antes. Inicia, assim, o texto de Marx:

Bolívar y Ponte, Simón, o "libertador" da Colômbia, nasceu em Caracas, em 24 de julho de 1783, e faleceu em San Pedro, perto de Santa Marta, em 17 de dezembro de 1830. Era filho de uma das famílias mantuanas que, no período da supremacia espanhola, costituíam a nobreza criolla da Venezuela.

O verbete, então, segue contando as aventuras do comandante, incluindo traições a seus companheiros, como Francisco de Miranda, que encarregara Bolívar de tomar conta da fortaleza de Porto Cabello:

Quando os prisioneiros de guerra espanhóis, que Miranda costumava confinar na fortaleza de Porto Cabello, conseguiram dominar de surpresa os guardas e tomar a cidadela, Bolívar - apesar de os prisioneiros estarem desarmados, ao passo que ele dispunha de uma guarnição numerosa e uma grande quantidade de munição - fugiu precipitadamente durante a noite com oito de seus oficiais, sem informar seus próprios soldados. Ao tomar conhecimento da fuga de seu comandante, a guarnição retirou-se ordeiramente do local, que foi ocupado de imediato pelos espanhóis.

É a primeira narração de Marx de uma fuga covarde de Bolívar. Ao todo, há outras cinco. Outra é esta aqui, quando Marx relata o depoinmento de uma testemunha:

Quando os combatentes [espanhóis] dispersaram a guarda avançada de Bolívar, segundo o registro de uma testemunha ocular, este perdeu toda a presença de espírito, não disse palavra, fez meia-volta no ato  com o cavalo, fugiu a toda velocidade para Ocumare, passou pelo vilarejo num galope desabalado, chegou à baía próxima, apeou de um saltos, entrou num bote e embarcou no Diana, deixando todos os seus companheiros provados de qualquer auxílio.

Para Marx, Bolívar também era despótico e egocêntrico. A idéia fixa do venezuelano era criar uma única República, que seria resultante da independência de várias colônias: "Eu desejo, mais do que qualquer outro, ver formar-se na América a maior nação do mundo, menos por sua extensão e riquezas do que pela liberdade e glória", escreveu ele em uma carta na Jamaica em 1815. Em 1826, com a Espanha fora da região, o Libertador organizou um congresso no Panamá com representantes de vários países de toda a América do Sul. Convidou até mesmo diplomatas do Brasil. Segundo o pensador alemão:

O que Bolívar realmente almejava era erigir toda a América do Sul como uma única república federativa, tendo nele seu próprio ditador. Enquanto, dessa maneira, dava plena vazão a seus sonhos de ligar meio mundo a seu nome, o poder efetivo lhe escapou da mãos.

No ano seguinte, em 1827, Bolívar voltou à Venezuela após cinco anos lutando contra soldados que defendiam a Espanha na Colômbia, no Peru e na Bolívia. Os interesses dos espanhóis eram guarnecidos por apenas mil soldados, a maioria deles americanos doentes e mal equipados. Para ajudá-los, a Espanha enviou sua maior expedição militar para a colônia em trÊs séculos de dominação e reforços anuais. "Mas o tamanho excedia a moral, e uma vez na América os números eram reduzidos pela morte ou deserção. Os soldados espanhóis eram conscritos (alistados obrigatoriamente), não voluntários. A Guerra Colonial não era uma causa popular na Espanha, e nem os soldados, nem os oficiais queriam arriscar suas vidas na América, muito menos na Venezuela, onde o ambiente de luta era notoriamente cruel", escreveu John Lynch.

Para confrontá-los, Bolívar e seus parceiros criollos contaram com a ajuda dos ingleses. Após as guerras com Napoleão, havia milhares de soldados desempregados ou com baixos salários na Grã-Bretanha. Ansiavam tanto por um convite para lutar na América do Sul que treinavam voluntariamente durante o dia em Londres. Ao chegar à Venezuela, passaram a ser conhecidos como bons marchadores, pois deixavam os soldados locais sempre para trás nos grandes deslocamentos de tropas. A Batalha de Boyacá, ocorrida quando Bolívar entrou na Colômbia e a qual o libertador considerava "minha mais completa vitória", foi vencida graças aos ingleses, que também venderam rifles, pistolas e espadas aos republicanos.

No retorno à Venezuela, quem recebeu Bolívar foi o general José Antonio Páez, que ajudara a debandar as tropas da metrópole e, trÊs anos depois, se tornaria presidente da Venezuela. em sua aula, o professor Marx nos conta então como se dá a entrada apoteótica do Libertador em Caracas:

De pé sobre um carro triunfal, puxado por 12 jovens vestidas de branco e enfeitadas com as cores nacionais, todas escolhidas entre as melhores famílias de Caracas, Bolívar, com a cabeça descoberta e uniforme de gala, agitando um pequeno bastão, foi conduzido por cerca de meia hora, desde a entrada da cidade até sua residência. Proclamando-se "Diretor eLibertador das Províncias Ocidentais da Venezuela]', criou a "Ordem do Libertador", formou uma tropa de elite que denominou de sua guarda pessoal e se cercou de pompa própria de uma corte. Entretanto, como a maioria de seus compatriotas, ele era avesso a qualquer esforço prolongado, e sua ditadura não tardou a degenerar numa anarquia militar, na qual os assuntos mais importantes eram deixados nas mãos de favoritos, que arruinavam as finanças públicas e depois recorriam a meios odiosos para reorganizá-las.

Ao ser questionado se não teria exagerado na crítica ao descrever uma pessoa com tantas conquistas, Marx respondeu o seguinte em uma carta ao camarada Friedrich Engels:

Seria ultrapassar os limites querer apresentar como Napoleão I o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas."

[fontes das citações: Simón Bolívar por Karl Marx, Martins Fontes, 2008; Simón Bolívar, a life de John Lynch, Yale University Press, 2006;  carta de Jamaica, disponível em www.analitica.com/bitbliotecarob/bitblioteca/bitblioteca/bolivar/jamaica.asp. ]

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